Hodor e o ofício do roteirista

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Você sabe o que um roteirista faz? Bem, escrever roteiros é uma resposta muito óbvia. Vamos abstrair mais um pouco. Como você imagina que deva ser um dia de trabalho na vida de quem vive de escrever roteiros para cinema, televisão, teatro, internet e etc? Imagino que agora tenha ficado um pouco mais complicado de responder. O jeito é chamarmos o nosso amigo Hodor para explicar um pouco mais sobre esse assunto.

SPOILER ALERT!

Se você ainda não assistiu todos os episódios da sexta temporada de Game Of Thrones, este artigo pode trazer muitos spoilers. Não continue a leitura se você pretende terminar de ver a série.

Hodor e a rotina do roteirista

Hodor e o ofício do roteirista
Se Hodor fosse um poeta, que poesia ele escreveria?

Se você é fã de GoT, certamente vai se lembrar de quem é o Hodor. Um personagem que acompanha o jovem Brandon Stark em sua jornada pelo norte, carregando-o em suas costas. Brandon ficou paraplégico após ser jogado pela janela de uma torre abandonada em Winterfell, só porque presenciou os irmãos gêmeos Cersei e Jamie Lannister dando uma rapidinha escondidos da galera.

Como se não bastasse o incesto, Cersei ainda é esposa do Rei Robert Baratheon, dono do Trono de Ferro na época do ocorrido. Imagina o tamanho da treta se Bran abrisse a boca sobre o que viu. Jaime nem hesita e joga o garoto lá de cima. Ele teve sorte em ter saído vivo. A tragédia acontece logo na primeira temporada.

Hodor trabalha em Winterfell, sempre muito leal à família Stark, e passa a auxiliar Brandon após o garoto descobrir que nunca mais irá andar novamente. Se pudermos destacar a melhor citação feita por Hodor durante a série, certamente escolheríamos o trecho abaixo.

Hodor…. ho… dor!!! Hodor.

Hodor é um sujeito bastante forte e alto, aparenta ter bem mais de dois metros de altura. Ele passa a ser o meio de transporte de Brandon. Hodor carrega o pequeno Stark em uma espécie de carrinho que fica apoiado em suas costas. Hodor não consegue falar outra coisa além de “Hodor”.  Todos os personagens chamam ele de Hodor, o que nos leva a crer que esse é o nome dele e que ele possui algum tipo de autismo.


Hodor e Bran após o “acidente”

Seja feliz ou triste, com raiva ou em pânico, Hodor sempre vai falar “Hodor” para se expressar. Ninguém sabe ao certo como ele ficou assim, ou se ele nasceu assim. Até que algo muito importante acontece lá pela metade da sexta temporada, revelando mais sobre Hodor e o passado de Winterfell.

Tá, mas e o que faz o roteirista…

… além de escrever diálogos tão profundos quanto, ” – Hodor! hodor”? 

É complicado resumir todo o trabalho do roteirista num único artigo, mas podemos compartilhar algumas informações pra introduzir as pessoas nesse ofício. Aí alguém pode perguntar: “Ah, então quer dizer que não é só sentar e escrever?”. Não, não é! Assim como o trabalho de um escultor não é apenas martelar a pedra, ou como o trabalho de um pintor não é só passar tinta na tela. Dependendo do caso, o sentar e escrever o roteiro talvez seja uma das últimas coisas que o roteirista vá fazer durante o processo de criação de uma história.

O roteiro É o produto final de um trabalho de criação. O roteiro NÃO É apenas uma ideia, uma sacada, uma virada. O roteiro NÃO É um plot, um twist, um arco curto ou longo. O roteiro NÃO É um gancho, um personagem plano ou esférico. Essas coisas ajudam a compor a obra. Elas são as ferramentas e não a obra. Assim como o martelo não é a obra do escultor e o pincel não é a obra do pintor. O roteiro É personagem, É trama, É estrutura, É narrativa e É gênero.

Antes do roteiro ser escrito, o autor da história precisa criar todos os elementos que estarão dentro dessa história. Além disso, ele também precisa saber responder perguntas como “Por quê estou escrevendo essa história?”, “Quem é que vai consumir essa história?” e “Qual a melhor maneira de contar a história que quero contar.”.

Técnica, estrutura, narrativa, gênero e desenvolvimento

Para construir a trama, o autor precisa conhecer a fundo a história que está contando. É necessário estabelecer os pontos fundamentais do universo onde a história ocorre. O passado, o presente e o futuro de todas as personagens, suas relações entre si e com o universo onde estão inseridas. Definir as personalidades delas é fundamental para que seja possível entender como se comportariam nas situações que lhes serão apresentadas durante o desenvolvimento da história, como é o seu jeito e como elas falam.

Além disso, é preciso saber qual é a melhor estrutura para contar aquela história. Vamos usar uma estrutura de três atos? Cinco atos? Sete atos? Vamos apoiar as biografias dos personagens na jornada do herói? Ou vamos investir mais no desenvolvimento de suas personalidades?

A narrativa vai ser linear? Ou vamos desenvolver várias tramas em paralelo? Qual é o ponto de vista da narrativa? Existe um narrador? Vamos quebrar a quarta-parede, ou vamos preservar a história dentro de seu próprio espectro?

Como vamos potencializar as tensões entre os personagens? Quem morrerá, quando, onde e porquê? Quem vai nascer? Quem vai casar? Há viradas que virão do universo, obrigando os personagens a tomarem atitudes que não imaginávamos? (Winter is Comming). Sobre quais gêneros vamos nos apoiar para desenvolver a narrativa? Ou não vamos usar nada disso e iremos arriscar outra coisa?

Ainda há muito mais o que se avaliar ao desenvolver uma história. Fazer com que esse volume gigantesco de informações transpareça na tela de modo organizado, estruturado e de uma maneira que prenda a atenção de quem está assistindo, é o trabalho do roteirista.

Se no final do dia o espectador nem perceber que todas aquelas falas, ações e paisagens vieram dos autores e seus roteiros, é porque o trabalho deu certo. Isso ajuda a explicar o motivo de muitas pessoas acharem que um roteirista só “senta e escreve”.

Voltando para Hodor e Game of Thrones

Durante as temporadas seguintes de GoT vamos acompanhando como Bran, Hodor e seus amigos estão sobrevivendo no meio da loucura de mortes e conflitos ao viajar pelos Sete Reinos em busca de uma árvore sagrada. Nós descobrimos que Bran tem uma habilidade especial. Ele é um warg. Bran consegue entrar na mente de animais, podendo ver através de seus olhos e é capaz até mesmo de controlá-los. Ah, ele faz isso com Hodor também.

Bran e seus amigos chegam ao seu destino na sexta temporada, quando o inverno está cada vez mais perto e a ameaça dos White Walkers, que são uns mortos vivos bastante sinistros, está cada vez mais presente. Ele encontra com um velho, envolvido pelas raízes da grande árvore. Trata-se do Corvo de Três Olhos. Uma entidade warg que consegue visitar o passado sem ser visto e irá ensinar muitas coisas ao jovem Stark.


Bran e o Corvo de Três Olhos visitando o passado.

O Corvo de Três Olhos leva Bran consigo em suas visões para testemunhar o passado de Winterfell. Bran vê histórias relacionadas aos seus pais e irmãos. E advinha quem já estava por lá? Hodor, é claro! Ele está bem jovenzinho e as pessoas da época chamam ele pelo nome verdadeiro: Willis. Incrivelmente, Willis é um garoto normal que consegue falar e se expressar, apesar do jeitão de grandalhão tímido e desengonçado.

Enquanto Bran está sendo treinado pelo Corvo de Três Olhos, ele descobre como nasceu o primeiro White Walker. Numa dessas visões, os White Walkers conseguem tocar em Bran dentro da visão e isso faz com que descubram a localização da árvore. Não demora muito para um exército de mortos vivos aparecer e invadir o local onde eles se abrigam. Durante a invasão, Hodor, Meera e Bran conseguem escapar da árvore através de um corredor que termina numa porta bem grande.

O exército de White Walkers avança impiedosamente pelo corredor. Ao cruzarem a porta, Meera pega o carrinho e, desesperada, começa a puxar Bran pra longe dali enquanto grita para Hodor segurar a porta. Com seu tamanho enorme, Hodor é o único capaz de segurar os mortos vivos por algum tempo dentro desse corredor. Tomada pelo pânico, Meera grita sem parar “Hold the door!! Hold the door!!” (Segure a porta! Segure a porta!).


Hodor segurando a porta.

Bran está preso em sua visão do passado e ele testemunha o jovem Willis caindo no chão, como se estivesse passando por uma convulsão. No presente, Meera continua gritando “Hold the door!” enquanto usa toda sua força para carregar Bran. Hodor, também faz um esforço sobre-humano para segurar os inimigos atrás da porta.


Hodor tendo uma “convulsão” no passado.

Bran consegue ouvir os gritos de Meera invadindo a visão do passado.

Hold the door!! Hold the door!!

Ao olhar para Willis no chão convulsionando, Bran percebe que o garoto está repetindo a mesma frase. Hold the door, hold the door, Ho.. the door, hol dor, Hodor!

E nessa hora, quem está assistindo diz: “Aaaaahhhh, então é por isso que ele se chama Hodor!”. 

Esse impacto positivo que é causado na audiência é fruto de uma decisão de narrativa que foi tomada antes mesmo do primeiro livro ser escrito. E você, espectador, fica maravilhado quando essa informação chega até você lá na sexta temporada.

Bem, é isso o que faz um autor-roteirista.

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